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O galego de todos nós

O galego de todos nós

Fernando Venâncio (Professor da Universidade de Amsterdam)

Certas histórias ficam-nos cravadas para a vida inteira. Uma delas é esta, que li em Vigo há bastantes anos.

Aconteceu que, em finais do século XIX, numa aldeia da Galiza, a Virgem apareceu a uma miudinha e lhe falou. Hoje, escapa-me o teor da conversa, mas sei que a cachopa foi ter com o prior da paróquia, contando-lhe que a aparição lhe dissera isto e aquilo. Reacção do reverendo: «Impossível, rapariga, não te apareceu coisa nenhuma. A Virgem nunca teria falado galego». Isto dito, evidentemente, no melhor espanhol.

Tenho dificuldade, digamos, ontológica em acreditar em aparições, sejam de que entes forem. Sabe-se, também, quanto aquela época foi fértil em episódios de tal natureza. Isso não impede que eu, que nasci tudo menos galego, sinta (e haverei de sentir cada vez que recordar a história) uma indizível revolta. Contra a prepotência, contra a canalhice, contra o esmagamento de algo muito precioso, muito íntimo, muito inviolável: um idioma materno.

Para os falantes de português, esse confronto com a negação absoluta do idioma é situação dificilmente concebível. Entre nós, podem-se rir da nossa entoação, do nosso sotaque, da nossa gramática alternativa, mas nunca se nos humilharia pela inteira língua que falamos. Não imaginamos, portanto, que reivindicação, ou que militância, ou que incontida raiva a defesa do idioma poderia exigir-nos. Na Galiza, tudo isso foi, e ainda é, mais do que pensável: trata-se duma crua e nua realidade. Sim, tem de ser revoltante, além de objectivamente absurdo, ouvires que, se falas galego, é por seres nacionalista, ou professor, ou camponês. Tudo condições muito honradas, mas dispensava-se o elogio.

Mesmo para os vizinhos portugueses, a problemática situação actual do galego é questão desconhecida e, mesmo uma vez conhecida, correria o risco de deixá-los indiferentes. São problemas espanhóis, eles que se avenham. Portugal é aquele país perfeito, um só povo, uma só nação, uma só cultura, uma só língua, com as fronteiras mais antigas da Europa, e portanto do Mundo... É quase, quase verdade. Isto, porque a fronteira linguística é tudo menos aquela perfeição. Há uns esbatidos, umas infiltrações, umas continuidades. Em suma, uma série de vagos problemas.

«Um dialecto rural»

Sejamos sucintos: a quase totalidade dos falantes de português ignora a proximidade linguística entre a Galiza e os países de fala portuguesa. Podemos lamentá-lo, mas o reverter dessa situação será um processo moroso, complexo, certamente desafiador das nossas melhores forças. Havemos de consegui-lo? Certas actuações de gente que se suporia informada obrigam-nos a algum cepticismo. Vou dar três exemplos, e depois mais um.

Em Setembro de 1987, em Compostela, um linguista brasileiro célebre proferiu estas palavras, mais tarde impressas, no seu original itálico, num volume saído na Galiza: «Se o galego é um dialeto rural do português, a sua norma culta só pode ser a portuguesa». Repare-se: aquele ‘se’ («Se o galego é») não era condicional, e equivalia a ‘uma vez que’. A mensagem era clara: o galego é, sem apelo, um «dialecto rural» do português.

Pela mesma ocasião, mas agora em Ourense, um prestigiado escritor português, numa palestra em que as palavras ‘galego’ ou ‘Galiza’ simplesmente não aparecem, apresentava-nos, a «nós, portugueses», como «os criadores» da língua, e Portugal como «país de origem» dela. Poderia crer-se que o senhor tinha em mente a adaptação do idioma a climas meridionais. Mas não: a referência à «passagem do latim ao português» desfaz quaisquer dúvidas. Do galego, nem sombra.

Bastantes anos depois, em Outubro de 2012, um famoso linguista português, falando de novo em Ourense (que culpa terá a bela cidade?), assim pregava aos galegos: «Não tenham medo do bilinguismo, ou seja, da convivência pacífica entre duas línguas que são irmãs na ascendência linguística, que são próximas, e pujantes, não apenas na Península Ibérica, mas também na América do Sul e no Mundo. Trabalhando em conjunto, o Português e o Espanhol constituirão talvez o maior bloco linguístico do Mundo». Do galego, de novo, nem sombra. Mas com esta agravante: um convite formal à promoção do espanhol, essa língua que ali mesmo, na Galiza, tão séria ameaça constitui.

O que seria, na mente dessa gente ilustre portuguesa e brasileira, a língua do país que visitavam? Uma curiosidade etnológica, um dialecto indígena, uns restos de português que por ali ficaram. Entrementes, algo nisto me supera: que jamais se tenha ouvido uma voz galega de protesto contra tanta deselegância, tão primária insensibilidade. Jogará, aí, aquele irónico e sábio cepticismo galego? Se sim, importa lembrar que existe gente mentalmente menos lúdica.

A proposta de Lapa

Bem diferentemente dos três indivíduos citados, houve um português que soube manter com o país a norte, e o seu idioma, uma relação duradoura e empenhada. Refiro-me a Manuel Rodrigues Lapa. Durante décadas, o professor divulgou, na imprensa portuguesa, todo o tipo de desenvolvimentos culturais, políticos e linguísticos por que a Galiza passava, expondo as problemáticas, dando projecção aos protagonistas. Do lado galego, ele encontrou sempre o melhor acolhimento e o mais franco apoio a iniciativas. A sua célebre proposta linguística para o galego, de 1973, foi difundida tanto em Portugal como na Galiza. Tem de reconhecer-se, porém, que ela não era a mais adequada nem a mais sensata.

Rodrigues Lapa vivia sinceramente preocupado pela ausência duma Norma para o galego. Vemo-lo na sua assídua correspondência com amigos além-Minho. Por inícios dos anos 70, ele concluíra que a língua efectivamente falada e, até então, escrita (uma «desordenada riqueza») não oferecia solidez para a definição duma norma ‘culta’ (ele dizia ‘literária’). A certo momento, convenceu-se de ter achado uma solução irrecusável: os galegos adoptarem o português como seu padrão culto. Lapa baseava essa oferta («brindada numa salva de prata», escrevia ele) num raciocínio que decerto lhe pareceu inatacável. Este: o português seria, hoje, aquilo em que o galego se haveria tornado, «se o não tivessem desviado do caminho próprio». Interlocutor privilegiado de toda esta intervenção era Ramón Piñeiro, o mais destacado intelectual galego da altura. Só que a proposta de Lapa se revelava infeliz em toda a linha.

Em primeiro lugar, historicamente, foi o padrão português a afastar-se da matriz medieval do idioma, por meio de dois longos processos: uma intensa castelhanização nos séculos XV a XVIII, e uma forte desgaleguização, com perda dos rasgos nortenhos mais marcados e o aviventar de rasgos sulistas (daí o desenfreado alastramento do ditongo “ão”). Rodrigues Lapa, um primoroso filólogo, mas filho do seu tempo, alimentava uma concepção essencialista do idioma, faltando-lhe também a informação histórica de que hoje dispomos.

Em segundo lugar, a ‘solução’ chegava no momento mais inadequado, a uma elite galega que, com Piñeiro na vanguarda, preparava esperançosamente o pós-franquismo, e encontrava numa língua própria o seu maior troféu político.

E, em terceiro lugar, a adopção do português como ‘padrão culto’ dos galegos criaria um cenário insustentável. Num ambiente de absoluto predomínio do espanhol, o próprio português rapidamente sairia desfigurado. Noutras palavras: reinando já uma diglossia, secular e instalada, com o espanhol como idioma de sucesso social e o galego como língua ‘caseira’, viria agora sobrepor-se a essa diglossia uma segunda, a do português como referência ‘de cultura’ dum galego incapaz de funcionar acima do quotidiano. Língua nenhuma sobrevive à trituração produzida por duas diglossias. O resultado imediato seria um caos incontrolável, com um desenlace mais que previsível: o triunfo, agora definitivo, do espanhol... O mantra, ainda audível em círculos galegos, de «antes absorvidos pelo português que pelo espanhol» não faz contacto com a realidade. O absorvente seria, no final, sempre o mesmo.

Uma língua por herança

Há uns dez anos, tive oportunidade de comentar, no semanário português «Expresso», a excelente edição ‘muito ampliada’ da Introdução à História do Português de Ivo Castro. Aí chamei a atenção para um problema entre nós jamais resolvido: o da suposta «ruptura» que teria fundado o português como língua diferente do galego. Para fundamentarem este cenário, os historiadores do português aduzem tradicionalmente particularidades de fonologia e morfologia que, vendo bem, mal distinguiriam dialectos. E eu prosseguia aí: «Enquanto essa ruptura não for identificada e descrita (e ninguém até hoje o ousou), galego e português continuarão a ser, para efeitos científicos, a mesma língua. E a própria existência do português como língua independente será da ordem do apriorismo político, dos aconchegos pátrios – mas decerto não da ciência». Escusado dizer que a ‘ruptura’ continua por identificar.

Certo: em círculos linguísticos portugueses, galegos e brasileiros, reina uma informal aceitação da especialíssima proximidade de português e galego. Nalguns casos, constata-se, sem complexos, que até cerca de 1400 galego e português eram «a mesma língua», afirma-se que os falantes de galego e os falantes de português são dotados dum «bilinguismo inerente», lembra-se, até, que a ligação do português ao latim se operou através do galego, admite-se mesmo, aqui e ali, uma identidade estrutural dos dois idiomas.

Mas falta um assumir frontal, explícito e colectivo disso, ou de parte disso. Pelo lado português, no dia em que os nossos linguistas informassem os compatriotas de que a primeira língua falada e escrita em Portugal foi o galego, idioma gerado e desenvolvido durante séculos e que o nosso país herdou com a maior naturalidade, nesse dia um novo tipo de relações se teria aberto com a Galiza, e até connosco mesmos.

Investir no galego, aproveitar o português

A situação linguística na Galiza de hoje não é, para a língua do país, a mais risonha. O espanhol domina em quase todas as esferas públicas, e o galego tem de lutar por manter um mínimo de prestígio social. Nestas circunstâncias, tudo quanto puder frear o desgaste social do galego será um ganho.

Poderão os falantes de português ter aí um papel? Claro. Interessando-se, dando sugestões, apoiando iniciativas, tomando-as eles mesmos. A própria língua portuguesa pode ser, aqui, de fundamental utilidade. Com efeito, depois do investimento no património próprio, nada mais útil para o galego que o aproveitamento, ponderado e resoluto, da oferta portuguesa. Nisto concordam todos os galegos responsáveis.

E a primeira coisa que o português tem para oferecer ao galego é... aquilo que eles já têm em exclusivo: o imenso material vocabular que só eles dois possuem, e que os distingue de tudo o resto. Uma parte desse material foi, no decurso dos séculos, perdendo uso na Galiza, até acabar esquecido ou relegado a pequenos nichos, enquanto continuou a circular na fala e na escrita dos utentes de português. O crescente contacto dos galegos com esta escrita e esta fala, quer pelo ensino, quer pela leitura e audição de produtos falados e escritos, estimulará o regresso, ou a difusão, desse sector lexical.

Isto não é ficção científica. Na escrita do galego, deu-se, ao longo de todo o século XX, um revigoramento não só do léxico próprio, como também daquele que é exclusivo a galego e português. Convirá examinar os mecanismos que aí intervieram e pô-los ao serviço do futuro.

O contacto directo com o português será, pois, uma utilíssima achega. Mas a plena eficácia exige actuação informada, planificada e coordenada. As acções voluntaristas e espontaneístas não chegam.

Para além desse âmbito ‘comum e exclusivo’, o português pode sugerir ao galego criações vocabulares feitas segundo os modelos patrimoniais comuns. Essas criações poderiam ter sido igualmente galegas, e são particularmente adequadas como alternativa a soluções espanholas.

Intervenções deste tipo exigem, pois, investigação, ponderação e testes no terreno. Mas elas prometem maior sucesso que a importação global e cega do léxico português, ele próprio doravante repartido por uma norma brasileira e uma portuguesa, em irreversível deriva.

O prioritário, o mais urgente, e decerto o determinante, é, porém, o reconhecimento, por todos os interessados, da contiguidade de português e galego. De novo: impõe-se um reconhecimento explícito, público, sem especiosos enleios, dessa contiguidade por parte dos responsáveis pela ‘imagem’ do idioma, os linguistas brasileiros, galegos, africanos e portugueses.

O tema da ‘identidade’ (uma noção de tipo essencialista) é, de momento, secundário. Se a ‘ruptura’ histórica entre português e galego nunca foi demonstrada, tal não significa que ela é indemonstrável. Mas, seja qual for o resultado dessa operação, a última palavra seria da ordem do político, do ideológico, numa palavra, das conveniências, estatais ou outras. Como devastadoramente afirmou Asafe Lisboa, numa edição de 2015 de Quilombo Noroeste: «A nação de Portugal precisava de uma língua que se chamasse ‘portuguesa’». Isto vale também para a Galiza, que necessita, para afirmar-se, duma língua a que chame ‘galega’.

Um sistema único

Em 1983, um congresso internacional, celebrado em Lisboa, aprovou uma moção do seguinte teor: «O Congresso reafirma a tese de que o galego e o português são normas cientificamente reconhecidas de um mesmo sistema». Este texto tem sido relembrado. Sim, é um passo inestimável esse afirmar da pertença de galego e português a um mesmo sistema linguístico, coerente e irredutível. Um sistema fonológico, morfológico, sintáctico, lexical e pragmático, criado e robustecido numa Galiza que abarcava o retalho noroeste do futuro reino de Portugal. Enfim, o galego de todos nós.

Nunca foi difícil dar conteúdo a uma declaração deste tipo, mas convém conferir-lhe também eficácia social. Existem hoje interessantes projectos comuns das nossas comunidades linguísticas, e a colaboração vem dando nítidos frutos. Importaria, porém, familiarizar também as sociedades civis com um conhecimento, pelo menos básico, das íntimas relações de português e galego.

É hoje escassa em Portugal (a ele me cinjo) a divulgação linguística, mas de modo nenhum falta curiosidade pelo idioma, saciada mormente com curiosidades avulsas e alguma exploração da angústia do ‘erro’. Mesmo as nossas relações históricas com a Galiza só raramente são abordadas em obras para mais vasto público. Não se duvide: a existência duma língua galega plena, respeitável e tão próxima da nossa pode ser, a sul do Minho, uma notícia alvoroçante.

Por onde começar, então? Talvez exactamente por essa notícia.

Fonte: Quilombo Noroeste.

Última modificação emQuinta, 10 Março 2016 23:37
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