
O frágil fio da memória
Joám Lopes Facal
Há já muitos anos, e o eco da memória soa mais amortecido, mas lembro como se fosse hoje a redescoberta de umha palavra até o momento inadvertida. Vivia eu em Madrid, na rua Victor de la Serna. Quase todo mudou desde aquela; perto da nossa casa ficava de umha parte o Estádio Bernabeu e da outra a rua de Arturo Sória que mantinha ainda o aspecto original que lhe imprimira o insigne urbanista. A rua conservava ainda daquela a sua funçom de eixo vertebrador que enfiava ao longo a Cidade Linear madrilena (1892): seis quilómetros de carril recorridos por um carro eléctrico, bordeado por singelas vivendas com jardim. Hoje, infelixmente, pouco fica do projecto original e a rua pouco mais é que umha leve cicatriz ao longo da M-30. O humaníssimo jardim doméstico e urbano que acompanhava a via eléctrica desapareceu engolido polo tráfico massivo que foge da cidade. Lembramos, por falar nisso, a triste história do tranvia que unia a cidade de Vigo com Porrinho de umha banda e com Baiona e Gondomar de outra. A ignoráncia habitual de concelhos e concelheiros e o desleixo social produz desastres irreversíveis.
Imos ao da palavra. Recebemos Ana e eu um bom dia na nossa casa a inesperada visita de um primo dela em primeiro grau que acabava de deixar a vida religiosa numha ordem que agora nom lembro e decidira reiniciar a vida secular visitando familiares perdidos. A prima médica que morava em Madrid com o seu homem, engenheiro que estava daquela a rematar os seus estudos de economia na Universidade Complutense, foi o objecto da visita que acabou prolongando-se mais do esperado pola animada conversa.
Falamos um bom bocado de política, de literatura e revistas e da Universidade. Escuitava o primo atentamente, até o momento em que Ana interrompeu para perguntar-me se tinha feita a compra e recordara o encargo que me tinha feito. Pois, a verdade é que nom, respondim-lhe, esquecim.
O amigo esboçou um sorriso e comentou: "esquecim, do verbo esquecer com certeza, que formoso!" O comentário colheu-me por surpresa, a língua tem muito de discurso inconsciente e nom soemos reparar no curso das palavras.
"Esquecer, de ex cadere ou ex cadescere, deixar cair1", completou o comentário. "É umha maravilhosa metáfora etimológica que ensina que a memória pende de um frágil fio que pode romper em qualquer momento".
Nunca esquecim a liçom nem a alegria do mestre em latins ao descobrir a poética raiz de um verbo para ele desconhecido.
Mais adiante pudem comprovar que o verbo escondia-se também nos dicionários italiano, francês, romeno, sardo, e mesmo asturiano. Também no espanhol, em palavra pouco usada: escaecer com a equivalência de desfallecer.
Vivemos sobre um caudal de metáforas e inesperados desvios, vivos ainda em homenagem inconsciente a ancestres esquecidos.
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