
O certo, o errado e o galego
Marcos Bagno
ANALFABETISMO FUNCIONAL E LÍNGUA PORTUGUESA
O Brasil é um continente de analfabetos funcionais. Dizem as pesquisas que seriam quase 70% da população. Se a isso acrescentarmos os analfabetos plenos, é fácil chegar aos 75%. Significa que toda essa imensa população (bem mais de cem milhões de pessoas) tem um escasso domínio das habilidades de leitura, de escrita e de cálculo. Sabemos que essa tragédia educacional é um projeto de nação levado muito a sério pelos reduzidíssimos grupos que detêm o poder político e econômico desde sempre. Um país que tem sua história marcada por três séculos e meio de escravidão e onde jamais ocorreu nenhum tipo de transformação radical das estruturas de poder (leia-se: nunca ocorreu uma revolução), o analfabetismo funcional não é um problema: é um dos muitos pilares de sustentação programada da desigualdade social e econômica, quesito em que o Brasil ocupa a 10a posição num total de 206 países. Aplausos para os escravocratas e seus capitães-do-mato!
A pouca familiaridade da imensa maioria da nossa população com as formas linguísticas consideradas (por quem, aliás?) boas, bonitas e corretas se deve, obviamente, a essa situação catastrófica. As pessoas que têm acesso a essas formas “legítimas” (como diz o sociólogo Pierre Bourdieu) reconhecem de imediato as formas “ilegítimas” (ou seja, erradas) quando elas são enunciadas. Para quem trabalha com educação em geral, e com educação linguística em particular, reconhecer o suposto erro, no entanto, não é suficiente. Do ponto de vista das ciências da linguagem, as formas consideradas erradas não são um resultado da situação de analfabetismo pleno ou funcional de quem as emprega. Seria fácil estabelecer uma relação de causa e consequência do tipo “se a pessoa é analfabeta (funcional), fala errado” ou “a pessoa fala errado porque é analfabeta (funcional)”. Mas essa relação é falaciosa: trata-se de dois fenômenos distintos. Vamos tentar entender por quê.
Há alguns anos, publiquei um livro chamado Nada na língua é por acaso. Esse título se refere a um fato que, para os linguistas, é óbvio e transparente, mas não para a maioria das pessoas nem, infelizmente, para a maioria de quem se dedica a ensinar. O que se quer dizer com “nada na língua é por acaso” é que toda e qualquer realização da língua tem uma razão de ser. Essa razão pode ser de ordem articulatória (relativa ao modo como os sons são produzidos e emitidos pelo nosso aparelho fonador), de ordem cognitiva (relativa ao modo como processamos a linguagem no nosso cérebro) e de ordem social (as comunidades às quais pertencemos modulam nossa maneira de falar). A prova mais cabal disso é o fato dos supostos “erros” serem os mesmos de norte a sul e de leste a oeste do Brasil. Mas a coisa não para por aí (a ciência é complexa, sinto muito). Outro fator responsável pela existência de muitas formas tidas por “erradas” é o tempo. Sim, cada grupo social vive num “tempo linguístico” diferente, e isso por muitas razões. Vamos ver algumas delas.
Há século e meio, a linguística vem mostrando uma série de fenômenos interessantes quando uma língua é transplantada de seu território original para um território novo. Ao contrário do que se poderia pensar, a língua tende a ser mais conservadora na área nova do que na área original. O latim mensa (“mesa”) sobrevive no português e no espanholmesa, mas em italiano (falado no lugar onde nasceu o latim) se diz tàvola e em francêstable (derivados de tábula, “tábua, prancha de madeira”). É que as inovações, durante muitos séculos, demoravam a chegar à área nova e, quando chegavam (se chegavam), as formas mais conservadoras tinham se enraizado de tal maneira que não cederiam lugar à inovação. A mesma relação se vê na comparação zona rural/zona urbana: os falares rurais tendem a ser mais conservadores em diversos aspectos da língua do que os da zona urbana, onde as novidades ocorrem e correm mais depressa, os contatos entre os grupos sociais são mais intensos, a cultura letrada circula com mais fluidez.
As pessoas mais letradas (uma pequena minoria, como vimos) reagem negativamente quando escutam alguém dizer onte, home, orde. Rotulam sem hesitar de “errada” uma forma como se eu vinhesse. Não têm dúvidas de que despois, tamém, auga, frecha, dereito e preguntar constituem incorreções. Dizem que seus ouvidos doem quando escutam com nós, em lugar de conosco, ou corenta e coresma, em vez de quarenta equaresma. E não admitem que alguém que recebeu uma “boa” educação diga circuíto,gratuíto, fortuíto, porque elas aprenderam que o acento nessas palavras deve recair no u, que forma ditongo com o i, de modo que o certo é circúito, gratúito, fortúito. Nem que se escreva mais onde devia ser mas.
Pois bem: todas essas formas estão perfeitamente registradas como corretas na norma culta da língua galega, a língua-irmã do português, e sobre a qual, infelizmente, pouca gente no Brasil sabe alguma coisa. O galego é falado na Galiza (ou Galícia), no noroeste da Espanha, logo acima de Portugal. No território da atual Galiza e numa porção do norte de Portugal, o latim levado pelos conquistadores romanos sofreu mudanças muito particulares e se transformou numa língua que, a partir do século XII, começou a se deslocar para o sul, acompanhando as vitórias dos exércitos portucalenses sobre os mouros, que ocupavam a Península Ibérica desde o século VIII. Essa língua só veio a receber o nome de “português” por volta de 1450, quando o reino de Portugal já estava muito bem consolidado, com suas fronteiras praticamente idênticas às atuais, e pouco tempo antes da ocupação do que viria a ser o Brasil. Até então, ela era chamada simplesmente de “linguagem”, “nossa linguagem” ou, na alta Idade Média, pura e simplesmente de “galego”. O termo “galego-português” é uma invenção da filologia portuguesa do século XIX, nunca foi usado em lugar nenhum antes disso.
Com a formação de Portugal como reino independente e com a permanência da Galiza (até hoje) sob o domínio da coroa castelhana, a língua, originalmente uma só, passou a ser falada em duas entidades políticas diferentes. E em cada um desses territórios ela se reestruturou, se reorganizou de acordo com as peripécias sociais, políticas, econômicas, culturais vividas por suas populações. Com isso, muitas formas antigas, que eram empregadas nas duas margens do rio Minho (que separa Portugal da Galiza), permaneceram em uso no galego, enquanto foram abandonadas ou sofreram mudanças no português. É o caso precisamente de todos os exemplos que dei acima. Assim, quando alguém no Brasil usa alguma daquelas formas, não está falando “errado”, está falando “antigo” ou, sem saber, está falando... galego, e galego moderno, cultíssimo, literário!
Uma comprovação da antiguidade dessas formas em português aparece nos bons dicionários. Por exemplo, no verbete quaresma, o dicionário Houaiss oferece as seguintes ocorrências, recolhidas de textos antigos: “1209 quaresma, 1242-1252quaeresma, 1365 correesma, s. XIV quareesma, s. XIV quereesma, 1489 coresma”. Como se vê, ainda em 1489 ocorria, na escrita, a forma coresma, idêntica à do galego atual. E se você procurar, no mesmo dicionário, a palavra dereito, vai encontrá-la definida como “arcaica e informal”.
Em síntese: uma coisa é reconhecer a tragédia educacional brasileira (levada ainda mais a ferro e fogo pela máfia que hoje controla este país triste), outra coisa é saber que as formas tidas como “erro” têm uma história, não aparecem na “boca do povo” só porque o povo é “burro”, mas refletem um tempo linguístico diferente do tempo linguístico das pessoas que tiveram o privilégio da educação de qualidade e aprenderam formas consideradas “cultas”, formas que entraram na língua somente a partir do século XVI, senão depois.
Por fim, para que as coisas fiquem bem claras: não estou dizendo aqui que é preciso, então, manter as pessoas no analfabetismo funcional já que o que elas dizem não está “errado”. Quem entender assim dá provas de sua precária capacidade de leitura ou de sua absoluta má-fé intelectual. Ou, pior, de ambas.
Fonte: Parábola Editorial
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