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Celebrar a opulência do idioma. Para Diego Bernal.

Celebrar a opulência do idioma. Para Diego Bernal.

Joám L. Facal

Os galegos gozamos do imenso privilégio de falar umha língua cosmopolita, na precisa acepçom de organismo vivo capaz de viver em qualquer clima ou lugar. A acepçom, avalizada pola RAG, descreve bem o exuberante polimorfismo do nosso idioma: galego aldeao ou académico, galego reintegrado, galego-português, e também galego tropical, essa variedade expressiva e desenfreada que seduziu a Valentim Paz Andrade.

O arquipélago portugalaico — galego por origem, náutico e tropical por história — é um espaço a um tempo insólito e familiar. Do vasto território austral em que se assenta, Portugal guarda a chave e o Brasil a mais desenfadada versom com Galiza no papel de cauta e discreta testemunha, perplexa ante tanta fartura linguística. Um autêntico mundo a explorar depois de séculos de rigoroso voto de reclusom e castidade, e ainda está África como promessa imediata se acreditamos no Acordo de Cotonu e na Estratégia Conjunta A-UE.

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Por enquanto, e a maneira de passatempo familiar, portugueses e brasileiros porfiam em disputarem o protagonismo do idioma num incessante torneio de semelhanças e diferenças legitimadoras. O crescente volume de traduçons recíprocas e filmes legendados confirma que o idioma, para além de código de comunicaçom é signo inequívoco de identidade.

A Nau de Ícaro com pavilhom português, de Brueghel o Velho (1561), é o poderoso ícone da epopeia fundacional do arquipélago portugalaico como apontou Eduardo Lourenço. Discorria o filósofo em memorável obra homónima acerca do estranho destino de Portugal, dilacerado entre a insignificáncia percebida e a gloriosa epopeia rememorada que acabou alimentando essa aguda consciência de hiperidentidade que arrasta. Híperidentidade portuguesa, subidentidade galega, paradoxos de umha cultura primordial comum precocemente cindida, pola aventura colonial portuguesa e a secular pressom assimilista que abafou e abafa a identidade galega.

O colóquio transoceánico entre a metrópole progenitora e o seu vigoroso rebento amazónico nom pode ser fácil, tensionado como está entre a sensaçom de desrespeito de umha parte á de potência incondicionada da outra. Ainda bem que a adesom simultánea de Espanha e Portugal à Uniom Europeia tenha elevado os dous países ateigados de história a um respeitado recinto universal de democracia e cultura. No conforto de Bruxelas, o europeanismo recém-adquirido, cultivado com a inveterada habilidade diplomática de Portugal, parece estar esbatendo por fim as arestas mais irritantes da tropicalidade ineludível e ingrata.

Há todo um género literário de troça e gracejo entre portugueses e brasileiros a custa do idioma que os desune. Dos meus anos de aprendizado do idioma, nunca concluído, devo admiti-lo, sempre lembrarei aquele engraçado e inteligente debate entre Gregório Duvivier no papel defensivo do português brasileiro frente ao Ricardo Araújo como paladim do português de Portugal. Inteligência de parte a parte a conta das diferenças fonéticas, lexicais e locucionais que os separam. É a guerra da pequena diferença: portugas frente a brasucas, ou tugas frente a zucas, simplesmente.

Guardo na minha gaveta de sapateiro dos livros em português algum engraçado exemplar dedicado a este incessante torneio das diferenças transatlánticas de vocabulário e pronúncia. O meu preferido é Schaifaizfavoire, SFF em acrónimo, como irónica trascriçom fonética de Mário Prata para solicitar algo com cortesia em Portugal. O livro do escritor paulistano, editado em 1993, deve ter sido um caso de sucesso e hilariante desforra de brasucas impenitentes porque o meu, adquirido num alfarrabista de Porto, ia já pola 12ª ediçom. O mais chocante para um galego é que muitas das entradas deste pequeno vocabulário de burlas ao português lusitano em que consiste poderiam ser dirigidas com toda justiça ao galego. Vejam senom (marco entre parênteses o vocábulo brasileiro vindicado como correcto): concelho (município), cona (boceta), cu (bunda), casal, na sua acepçom de pequena propriedade, fala-barato (tagarela), forreta (pão-duro), gelado (sorvete), e mesmo ok (aqui a piada é que os portugueses pronunciam cerimoniosamente ocapa que, a verdade, soa um bocadinho doutoral de mais), imperial ou fino (chope, copo de cerveja de barril) que aqui dizemos quinto ou canha.

O caso é que os galegos temos um bom elenco de vocábulos expressivos e intransferíveis a exibir. Ai estám choio e choiar para aludir ao trabalho com esse ponto de desdém que merece, aquelar como verbo válido para todo uso, como a navalha suíça, ou aquelinho como vocativo carinhoso sempre a mao. Os portugueses dim coscuvilhar e bisbilhotar para andar em continhos e intrigas enquanto os brasileiros preferem fofocar; nós preferimos rejoubar ou andar de rejouba. Também preferimos caralhudo a “porreiro”, bazuncho a “gorducho” e galdrumada para aludir à “mixórdia”dos nossos parceiros linguísticos. O galego-português, em resumo, é pródigo em falares e sabores particulares que vale desfrutar sem renegar dos alheios que se oferecem de graça.

O avoengo do galego como sócio fundador do idioma, humilhado actualmente por indigência sobrevinda baixo bandeira alheia, aconselha optar por umha atitude receptiva e discreta, a nom ser, claro está, quando se pom em dúvida a sólida legitimidade inveterada de palavras imprescindíveis como minhoca onde o sólido doutorado aldeao do galego pode servir de tribunal inapelável ante qualquer atribuiçom exótica.

Guardamos, é bom nom esquecer, a sólida arquitectura lexical e sintáctica do latim nativo partilhada com o português de Portugal do qual nos afasta aliás o fastidioso chilreio sibilante da sua pronúncia, em aberto contraste com a clara dicçom brasileira onde cada vogal é emitida como fiel acompanhante da consoante: carne e osso de cada palavra.

Ao que eu queria chegar era á gozosa apariçom de um inspirado prontuário de brasileiro quotidiano que é ao mesmo tempo guia de campo do país e tratado de brasileirice. O seu autor é um luguês nacionalizado na Corunha e recriado como professor em Brasil, de nome Diego Bernal. Falo de Português do Brasil. O galego tropical1, livro com sabor a crónica de descoberta de inegável tempero galaico. O choque cultural transoceánico é interpretado com ironia de desterrado provisional e gozo de descoberta inesperada. Lembra o honroso ofício de cronista galego em terra americana, com um pé na urbanidade recém-descoberta e o outro na paróquia que guarda a memória, das mil revistas da emigraçom galega ultramarina.

O Brasil de Diego é quotidiano e convivencial e o seu livro, um amigável passaporte para decifrar a assombrosa criatividade linguística e cultural brasileira. Redigido em prosa impaciente e directa como convém a um retrato tirado do natural, o texto deambula polo léxico e a fonética, pola onomástica e a toponímia para saltar dai ao cinema, á música e a arte de viver. A sintética brevidade do texto bem merece o índice lexical e onomástico que o complementa e o cordial prefácio do seu companheiro de descobertas e brasileirices, Xoán Lagares.

Falando de fonética, recorda-nos Diego que liberdade faz-se libeghdadji em Brasil, em oportuno sublinhado de como as próprias consoantes abrandam e dançam em rodopio com as vogais naquele imenso país. A libeghdadji brasileira, amigos, é pura liberdade em tecnicolor.

1 Diego Bernal Rico, Português de Brasil. O galego tropical, Através Editora, 2020

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