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O galego do divulgador científico: entre Cila e Caríbdis

O galego do divulgador científico: entre Cila e Caríbdis

Carlos Garrido

Há um tempo assistim a umha conferência divulgadora sobre a constituiçom e o funcionamento do encéfalo humano proferida, em galego, por um investigador galego, e que se revelou muito amena e interessante. No entanto, durante os cerca de quarenta e cinco minutos que durou a sua intervençom, o conferencista nom deixou um momento de perturbar-me com a constante reiteraçom do extravagante termo cortiça cerebral. Cortiça cerebral? Cortiça?! Ou seja, o material (suberoso) leve e isolante, utilizado tradicionalmente na Galiza nas redes e linhas de pesca, obtido a partir da casca do sobreiro! Tratava-se, porventura, de umha brincadeira, talvez referida a pessoas lerdas que pareceria terem o cérebro feito com cortiça, em vez de com neurónios? Nom, infelizmente: tratava-se, simplesmente, de que o divulgador, embora tivesse umha atitude positiva em relaçom ao uso do galego, estava a ser vítima de umha inoportuna interferência do castelhano, de modo que, quando ele pensava estar a referir o equivalente do castelhano corteza cerebral (ou seja, em galego correto, córtex cerebral!), na realidade nom parava de falar à sua audiência de um improvável «corcho cerebral»!

Na minha condiçom de professor de traduçom técnico-científica para galego, e enquanto autor de obras como o Manual de Galego Científico ou a recente monografia A Traduçom do Ensino e Divulgaçom da Ciência, estou muito consciente dos dous perigos, potencialmente devastadores, que espreitam constantemente a pessoa que produz textos científicos divulgadores em galego: por um lado, a atraçom, fortíssima e patente, do castelhano, língua de cultura absolutamente preponderante na atual Galiza, e, por outro lado, a atraçom, assaz intensa e insidiosa, do inglês, língua absolutamente preponderante na investigaçom científica em todo o mundo. E entre esse Cila e esse Caríbdis se encontra o galego do divulgador (e do docente) galego, quem, em benefício da idiomaticidade e da funcionalidade do seu código expressivo, deverá esforçar-se por se subtrair à indissimulada atraçom do castelhano e à mais subtil hipnose do inglês. Darmos algumha indicaçom ou sugestom para conseguir tal constitui o objetivo destas linhas.

Primeiro, o perigo da atraçom castelhana. É evidente que todos nós, polas condiçons socioculturais e sociopolíticas imperantes na Galiza contemporánea, fomos instruídos, com independência de qual for a nossa idade e a nossa língua materna, com muita mais eficácia em castelhano do que em galego. As deficiências expressivas em galego constituem um problema individual, mas também social, que hoje afeta, em maior ou menor medida, todos os galegos, sem exceçom. Ora bem, com o objetivo de superarmos esses défices expressivos em galego, e além da possibilidade de consultarmos obras que tratam especificamente o galego científico, como as duas acima mencionadas, hoje temos ao nosso dispor umha estratégia muito fácil de aplicar e muito potente: a leitura ou a escuita freqüentes (internet, livros, revistas, televisom, etc.) de textos científicos didáticos e divulgadores (e também doutros campos) compostos em português, quer dizer, naquele código que cada vez mais galegos cultos reconhecemos como conjunto de variedades socialmente estabilizadas (lusitano, brasileiro) da nossa língua galega, ou galego-portuguesa. Assim, dado que o lusitano e o brasileiro compartilham com o galego os traços fundamentais da gramática e praticamente todo o léxico anterior ao século XVI (altura em que começam na Galiza os Séculos Obscuros, que induzem no galego umha incapacidade neológica e umha subordinaçom lexical ao castelhano que se estendem até os nossos dias), hoje revela-se natural, idiomático e económico completarmos, potenciarmos e emanciparmos o galego através da incorporaçom das construçons morfossintáticas e dos recursos lexicais modernos ou modernizados que integram as linguagens especializadas do luso-brasileiro. Deste modo, pouco a pouco, poderemos tornar-nos utentes de um verdadeiro galego (geral e científico) de qualidade (na feliz expressom do Professor Xosé Ramón Freixeiro Mato), bem provido, por exemplo, de construçons morfossintáticas tam genuinamente galegas e tam produtivas na linguagem científica como o infinitivo flexionado ou o futuro do conjuntivo, e o qual distinga com clareza e segurança, por exemplo, entre óleo e azeite, entre umha pegada (do pé!) e umha impressom digital (do dedo!), entre algarismo e cifra, entre rego, rega e irrigaçom, entre caule e talo, entre vidro e cristal, entre chao e solo, ou, enfim, entre côdea, crusta, casca, cortiça e córtex! (*)

Em segundo lugar, o perigo da hipnose anglo-saxónica. É profunda a distorçom que está a exercer a influência do inglês nas línguas galega e castelhana do cientista e do divulgador da ciência (no galego, freqüentemente, através do castelhano!), distorçom que se manifesta em todos os níveis expressivos (léxico, morfossintaxe, etc.). Assim, por exemplo, centrando-nos no léxico, observemos que, entre nós, cada vez é mais habitual ouvirmos ou lermos o uso da preposiçom em, por decalque do uso inglês de in, para se indicar um ponto do futuro, mais ou menos próximo, que atua como momento de início de algumha açom (*«Em cinco minutos, analiso as amostras»), quando o tradicional tem sido utilizar, para tal fim, o advérbio dentro (de), com um significado diferente do da preposiçom em, a qual, tradicional e genuinamente, denota a duraçom da açom («Dentro de cinco minutos, analiso as amostras» [açom, esta, que, de facto, pode consumir duas horas!], diferente de «Em cinco minutos, analiso as amostras» [duraçom da análise!]); por pressom da voz inglesa evidence ‘indício, prova, dado, sinal’, entre nós tem-se tornado freqüente, na língua da divulgaçom científica, o uso de evidência (cujo valor genuíno é ‘aquilo que é patente e nom precisa de prova ou demonstraçom’) no sentido ruturista de ‘indício, prova’ (ex.: *«há evidências experimentais de cura»); por pressom do vocábulo inglês brain, que propriamente denota o encéfalo, mas que, na prática, é muito utilizado no sentido de ‘cérebro’, muitos divulgadores já nom estabelecem em galego ou em castelhano a distinçom tradicional entre encéfalo (o todo) e cérebro (a parte); enfim, como indevida traslaçom da voz inglesa simples ape (que denota os gibons, os orangotangos, os gorilas e os chimpanzés), está a utilizar-se em galego e em castelhano a voz simples símio, quando o equivalente real é o termo composto símio (ou macaco) antropoide, de modo que o correto nom é *Projeto «Grande Símio» (< ingl. Great Ape Project), mas si Projeto «Grande Antropoide» (ou, melhor, Projeto para a Proteçom dos Grandes Antropoides)! Duas dicas ou pistas contra este perigo da interferência do inglês: por um lado, a consulta freqüente do Diccionario crítico de dudas inglés-español de medicina, do tradutor científico Fernando A. Navarro, que explica com toda a clareza centos de casos como os antes apontados; por outro lado, acautelar-se contra «novidades» expressivas que, por muito «na moda» que puderem estar, deverám ranger nuns ouvidos bem educados e com sensibilidade lingüística.

Para findarmos este artigo, umha última exortaçom dirigida aos redatores galegos de textos especializados e divulgadores: apliquemos as estratégias assinaladas e, assim, com um pequeno esforço da nossa parte, conseguiremos safar-nos das perigosas atraçons do castelhano e do inglês e passaremos a cultivar um galego formal, um galego científico, mais rico e mais genuíno, de modo a sermos capazes de produzir enunciados tam idiomáticos e funcionais como, por exemplo, o seguinte: «Já há indícios [nom *evidências!] de as sinapses estabelecidas entre os neurónios do encéfalo [nom *cérebro!] sofrerem [infinitivo flexionado!] contínuas modificaçons, o que aponta para umha grande plasticidade do córtex cerebral [nom *cortiça!]».

NOTA

(*) E que nom nutram dúvidas os leitores deste artigo que utilizem habitualmente as normas da Real Academia Galega de que esta emancipadora estratégia de coordenaçom morfossintática e, sobretodo, lexical do galego com o luso-brasileiro formal e especializado é perfeitamente compatível com a sua prática ortográfica. Isto é assim, em primeiro lugar, porque essas normas da RAG regulam exclusivamente a ortografia e a morfologia geral do galego, e nom, realmente, o léxico (geral) e a gramática, os quais, felizmente, som ámbitos livres, abertos à possibilidade de melhoramento; e, em segundo lugar, porque ainda que a RAG se obcecasse em reclamar para si potestade codificadora no ámbito do léxico, que pessoa culta e com formaçom científica lhe havia –lhe há!– de fazer caso, quando no dicionário da RAG continuam a surgir asneiras como designar todo o grupo dos tubarons com a voz *quenlha (quando que(n)lha, na Galiza e em Portugal, denota só a espécie Prionace glauca!), como designar as cobras-capelo (quer dizer, o grupo de serpentes, da família Elapídeos, integrado polos géneros Naja, Ophiophagus, Hemachatus, Pseudohaje e Aspidelaps) com a voz *cobra (o que equivale a designar em castelhano as serpentes que nessa língua se denominam cobras com a voz culebra!), ou como propor para o galego, sem rubor, as horríssonas e indecentes soluçons *a silicona, *a icona e *a emoticona (o que equivale a propor para o castelhano as vozes «el silicoño», «el icoño» e «el emoticoño»)!

Artigo inicialmente publicado no portal GCiencia

Última modificação emQuinta, 06 Outubro 2016 11:31
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